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Asma

BRONCODILATADORES ANTICOLINÉRGICOS

A compreensão do papel do tônus parassimpático colinérgico na contração do músculo liso brônquico e no estreitamento das vias aéreas na asma começou a se desenvolver significativamente durante a primeira metade do século XX. O tônus da musculatura lisa das vias aéreas é amplamente determinado pelo controle colinérgico parassimpático, que é exercido pelo vago que inerva as grandes vias aéreas.1 O nervo vago fornece grande parte da inervação sensorial das vias aéreas mediando a respiração, a broncoconstrição e os reflexos protetores, como tosse.

São cinco subtipos de receptores muscarínicos que estão identificados – um tipo de receptor acoplado à proteína G que responde à estimulação pela acetilcolina (ACh), três dos quais presentes em humanos (M1, M2 e M3), apresentando diferentes efeitos fisiológicos.2,3

A classe de drogas referidas como antagonistas de receptores muscarínicos inclui os alcaloides de ocorrência natural – atropina e escopolamina, os derivados semissintéticos e os congêneres sintéticos como ipratrópio e tiotrópio que não atravessam a barreira hematoencefálica.4

Historicamente, a atropina (protótipo do grupo) é um alcaloide obtido da planta Atropa belladonna (Figura 1), conhecida como beladona. O extrato da planta contém dois alcaloides principais, a atropina e a escopolamina. Na Índia, a raiz e as folhas de plantas da família das solenáceas (Datura stramonium) eram queimadas e a fumaça inalada utilizada para tratar a asma. Os britânicos observaram esse ritual e introduziram os alcaloides da beladona na medicina ocidental no início de 1800.4,5

Henry Salter (1823–71) descreveu em detalhes os chamados sedativos mais eficazes, tanto para aliviar quanto para prevenir as crises de asma, citando notadamente o tabaco, o clorofórmio, o estramônio e a beladona.6,7 A atropina pura foi isolada pela primeira vez em 1831 pelo farmacêutico alemão Heinrich Mein (1799–1864) a partir de raízes secas da beladona8 e sua capacidade de bloquear a estimulação vagal do coração foi demonstrada em 1867 por Bezold e Bloebaum.4  A atropina foi sintetizada pela primeira vez em 1901 pelo químico alemão Richard Martin Willstatter (1872–1942).

Nos primeiros anos do século XX, as propriedades anticolinérgicas da atropina tornaram-na popular no tratamento da asma. Nesta ocasião, respaldado por médicos e publicações científicas idôneas,9 os cigarros de estramônio contendo atropina ou anticolinérgicos por injeção tornaram-se populares (Figura 2) no tratamento da asma10 até o surgimento de drogas mais efetivas e com menos efeitos colaterais (broncodilatadores simpaticomiméticos).

A inervação parassimpática, via vago, é autonômica dominante, regulando o tônus muscular brônquico, as secreções das vias aéreas, a circulação brônquica, a permeabilidade das vias aéreas e o recrutamento e ativação de células inflamatórias.2,11,12 A inervação está presente ao longo das vias aéreas, porém está concentrada principalmente nas grandes e médias vias.13 Os nervos pós-ganglionares inervam os órgãos alvos, que incluem músculos lisos, glândulas submucosas e vasos sanguíneos. O maior neurotransmissor dos nervos colinérgicos é a acetilcolina (ACh), que atua ligando-se a receptores nicotínicos e muscarínicos localizados nestes órgãos alvos, causando contração muscular e secreção mucosa.

Pelo menos três dos muitos genes de receptores muscarínicos intimamente relacionados (M1, M2 e M3) são expressos no pulmão humano e desempenham funções distintas. Dentre estes, acredita-se que os receptores M1 facilitem a amplificação e a transmissão do tráfego colinérgico para os nervos pós-ganglionares. Os receptores M2 estão presentes nas membranas pré-juncionais das junções neuromusculares do músculo liso das vias aéreas e regulam o feedback negativo, diminuindo a transmissão da acetilcolina. Já os receptores M3, localizados nas células musculares lisas e nas células da submucosa brônquica regulam a secreção de muco e medeiam a contração do músculo liso.14-17 Os broncodilatadores anticolinérgicos são inibidores competitivos reversíveis dos receptores M1, M2 e M3.18

A inflamação das vias aéreas também tem um papel fisiopatológico importante na asma, e a ACh induz à liberação de mediadores pró-inflamatórios pelas células epiteliais brônquicas e células do sistema imune, incluindo macrófagos, mastócitos, monócitos, neutrófilos e eosinófilos.6,19-21 A atividade colinérgica pode desempenhar um papel significativo na remodelação do músculo liso das vias aéreas.22,23

O sistema nervoso parassimpático contribui para a fisiopatologia da asma. O aumento do tônus do músculo liso das vias aéreas na asma decorre possivelmente como consequência de um aumento do tônus colinérgico.24-26 Este fato talvez ocorra devido ao aumento da estimulação aferente por mediadores inflamatórios locais, ao aumento da liberação de ACh pelas terminações nervosas colinérgicas, à expressão alterada dos receptores muscarínicos (ou receptores M3 aumentados ou M2 reduzidos) e/ou à redução nos neurotransmissores inibitórios.27
Os anticolinérgicos são menos utilizados na asma do que na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), sendo considerados medicamentos de segunda linha, pois os β2-agonistas são mais efetivos.
Os anticolinérgicos são antagonistas de receptores muscarínicos que, além de apresentarem ação de redução do tônus vagal, apresentam ações anti-inflamatórias. O linfócito, célula importante partícipe do processo inflamatório da asma, expressa variada quantidade de receptores colinérgicos28 sendo que na asma também as células epiteliais o fazem. Em porquinhos-da-índia, o brometo de tiotrópio inibe o remodelamento das vias aéreas induzido por alérgenos,29 enquanto receptores muscarínicos medeiam a proliferação de fibroblastos nos pulmões.30 O brometo de tiotrópio tem demonstrado suprimir a liberação de mediadores quimiotáticos, in vitro, em especial, o LTB4 pela ACh.31

Os antagonistas muscarínicos podem ser úteis no tratamento da asma atópica porque altas concentrações de IgE podem ser um dos fatores que determinam o tônus das vias aéreas face ao aumento da produção de ACh não neuronal, que ativa os receptores muscarínicos M3 encontrados em todas as vias aéreas, incluindo pequenos brônquios.32,33

O brometo de tiotrópio previne a broncoconstrição induzida pela metacolina na asma.34,35 Este efeito já é visto em trinta minutos e persiste ao menos por 48 horas. A resposta clínica aos anticolinérgicos varia entre os pacientes com asma, sendo muito individualizada devido presumivelmente à variação interindividual do controle do tônus broncomotor. O brometo de tiotrópio apresenta afinidade pelos receptores muscarínicos de 6 a 20 vezes maior do que o brometo de ipratrópio.3 O brometo de tiotrópio se liga aos três subtipos de receptores muscarínicos presentes nas vias aéreas, sendo que ao M3 com taxa de dissociação muito lenta, e taxa rápida de dissociação ao subtipo M2. Presume-se que a associação mais rápida de LAMA com o receptor M3 seja a base de seu início de ação mais rápido.36 Ressalte-se que o subtipo M3 é o receptor considerado dominante tanto na contração do músculo liso brônquico como na regulação da secreção de muco pelas glândulas submucosas.37

Existe um grupo restrito de pacientes em que os anticolinérgicos proporcionam benefícios adicionais ao tratamento da asma, como:

Nos idosos, sabe-se que o tônus colinérgico aumenta com a idade38,39 e que em paralelo existe um declínio do efeito dos broncodilatadores β-agonistas relacionados à idade.40
Nos pacientes com asma noturna, onde existe sabidamente aumento da ação parassimpática à noite, cujo bloqueio eferente com atropina41 ou ipratrópio diminui a broncoconstrição noturna.
Nos pacientes com asma severa que se beneficiam dos efeitos dos broncodilatadores anticolinérgicos associados à combinação com inaladores contendo CI-LABA.42
Em pacientes com asma T2-baixa nos quais a medicação utilizada de primeira escolha ainda é o CI, embora pouco eficaz neste grupo, os macrolídeos e os LAMAs estão associados à melhor resposta.43

É conhecido que as infecções virais aumentam o reflexo de broncoconstrição em indivíduos mesmo sem asma.44,45 Isto decorre de uma disfunção induzida no receptor M2 pela infecção viral relacionada à liberação da proteína básica maior (MBP) pelos eosinófilos.46-48 A MBP liga-se ao receptor M2 bloqueando sua função.49 Este pode ser o mecanismo pelo qual as infecções respiratórias determinam uma temporária hiper-responsividade à histamina, à metacolina, ao exercício e ao ar frio em indivíduos sem asma subjacente o que contribui para aumento do broncospasmo vírus-induzido na exacerbação da asma.

Deve ser considerada ainda uma parcela de indivíduos intolerantes aos broncodilatadores ß2-adrenérgicos para tratar o broncospasmo causado por β-bloqueadores, e/ou aqueles homozigóticos para arginina (Arg/Arg) ao invés de glicina (Gli/Gli) no resíduo 16 do aminoácido do ß2-receptor.50-53
Na revisão da Global Initiative for Asthma (GINA), análise de 2022, é recomendada a utilização dos antagonistas muscarínicos de longa ação (LAMA) como terapia adicional ao tratamento para as Etapas 4 e 5 da doença.54 Torna-se uma alternativa ao aumento dos corticoides por inalação (CI) na Etapa 4, ou antecedendo a introdução de drogas imunobiológicas mais caras e complexas na Etapa 5, como a anti-IgE Omalizumabe, os anti-IL5, anti-IL4Rα, TSLP ou mesmo a termoplastia brônquica. Um outro viés para o uso do brometo de tiotrópio seria considerá-lo no lugar de um LABA como adição ao CI em pacientes na Etapa 4 que são suscetíveis aos efeitos adversos dos LABAS (p. ex. palpitações, tremores).55

Se o paciente desenvolve sintomas diurnos mais de duas vezes por semana, acorda à noite com frequência, usa medicação de resgate mais de duas vezes por semana ou sua doença limita suas atividades no cotidiano, existe indicação para a droga.

Os anticolinérgicos na asma funcionam como medicação adicional em pacientes mal controlados, geralmente com asma severa e têm proporcionado significante redução na obstrução do fluxo aéreo, com melhora na função respiratória, diminuindo o risco de exacerbações com alívio nos sintomas. São drogas seguras, com longa história no tratamento da DPOC, há mais de 30 anos, sendo a associação uma contingência natural.

Foram introduzidas mais três drogas anticolinérgicas de longa ação (LAMA) além do brometo de tiotrópio – o brometo de glicopirrônio, o brometo de umeclidínio e o brometo de aclidínio, já aprovadas para tratamento de manutenção broncodilatadora na DPOC, que apresentam boa seletividade e lenta dissociação do receptor muscarínico M3. As duas primeiras estão em fase de avaliação mas, parecem apresentar resultados semelhantes ao brometo de tiotrópio na asma, constituindo-se em opções adicionais ao tratamento. Um novo broncodilatador encontra-se em fase de investigação, o revefenacin (TD4208). Os tratamentos com o brometo de glicopirrônio e o brometo de umeclidínio têm efeitos benéficos na função pulmonar e no controle dos sintomas em indivíduos com asma leve a moderada,56-58 mas não foram avaliados como terapia adjuvante para asma grave.

Posologia

Para o brometo de tiotrópio a dose liberada é de 2,5 mcg por puff (2 puffs por posologia diária) correspondendo a 3,124 mcg de brometo de tiotrópio monoidratado, pelo inalador Respimat, devendo ser aplicada sempre no mesmo horário do dia, de preferência pela manhã. O uso do brometo de tiotrópio na asma está liberado para crianças a partir de 6 anos de idade, com asma, que permaneçam sintomáticas e mal controladas.

Vários ensaios clínicos avaliaram o uso do brometo de tiotrópio em adultos, adolescentes e crianças com asma. O brometo de tiotrópio 5 mcg foi adicionado ao tratamento com CI-LABA em pacientes adultos com asma sintomática mal controlada o que resultou em uma melhora de até 154 mL no VEF1 (p < 0,001), com redução de 21% no risco de exacerbação da asma grave (p = 0,03).59

Uma análise de subgrupo também evidenciou risco reduzido de exacerbações graves da asma, com melhora da doença ao controlar a taxa de resposta independente das características clínicas de base (sexo, idade, índice de massa corporal, duração da doença, idade de início e tabagismo).60,61 Uma análise de segurança agrupada de sete estudos randomizados, duplo-cegos, controlados com placebo (fases II e III) constatou que ambas as doses de 2,5 e 5 mcg de brometo de tiotrópio apresentavam segurança e tolerabilidade comparáveis com placebo – 57,1% v. 55,1% e 60,8% v. 62,5%, respectivamente.57 Vários estudos em adolescentes e em crianças também mostraram significativa melhora na função pulmonar, com um perfil de segurança comparável ao placebo.61-66

O brometo de tiotrópio na dose de 5 mcg/dia está indicado como tratamento auxiliar para pacientes com asma com idade 6 anos com asma mal controlada nas Etapas 4 e 5 da GINA.

A dose para o brometo de glicopirrônio é de uma inalação do conteúdo de uma cápsula de 50 mcg por dia. Para o brometo de umeclidínio a dose preconizada é de 62,5 mcg por inalação em uma única aplicação diária, através do dispositivo Ellipta.

O brometo de aclidínio ainda em fase experimental na asma, tem dose sugerida de 400 mcg a cada 12 h.

Os efeitos colaterais descritos estão relacionados às ações colinégicas da classe terapêutica. Dentre elas a de maior incidência, a xerostomia (16%), além de alterações na motilidade digestiva retardando o esvaziamento gástrico e ainda diminuição na secreção ácida gástrica.67 Outros efeitos adversos da classe são faringites, tosse, glaucoma de ângulo fechado, distúrbios do paladar, reações de hipersensibilidade, retenção urinária em homens, arritmias, palpitações.68

Os LAMA não são preconizados para crianças menores de 12 anos de idade, segundo a Global Strategy for Asthma Management and Prevention (GINA). Entretanto, em fevereiro de 2017, o FDA (Food and Drug Administration) aprovou somente o brometo de tiotrópio Respimat para uso em crianças com idade ≥ 6 anos.69

Da mesma forma como a monoterapia com LABA não é segura na asma, existe um risco aumentado de graves exacerbações em pacientes que recebem LAMA sem uso concomitante de corticoide inalatório.70

Anticolinérgicos na Sala de Emergência

A GINA também inclui antagonistas muscarínicos de curta ação para serem utilizados apenas em combinação com ß2-agonistas de curta ação (SABAs) na abordagem das exacerbações agudas.71 O brometo de ipratrópio em altas doses, 0,5 mg para adultos e 0,25 mg para crianças, pode ser adicionado às soluções de nebulização de ß2-agonistas visando à potencialização da broncodilatação, particularmente nos pacientes com obstrução muito severa (PFE < 40% do previsto).72 Esta dose pode ser repetida após 60 minutos. Outra opção, para uso em adultos, é a utilização do brometo de ipratrópio através do spray acoplado ao espaçador, na dose de 4 puffs (80 mcg) a cada hora. Não existe no tratamento agudo da asma indicação para o uso de anticolinérgico de forma isolada, isto é, sem o uso concomitante de ß2-agonista por inalação. Os anticolinérgicos podem ser especialmente úteis no broncospasmo induzido por ß-bloqueadores.

O sítio de ação dos anticolinérgicos ocorre principalmente nas grandes vias aéreas proximais, sendo que as vias aéreas distais à nona geração não são inervadas pelo parassimpático.73 A ação dos anticolinérgicos dilatando as grandes vias aéreas facilita a propagação dos ß2-agonistas até a periferia da árvore brônquica. O mecanismo de ação ocorre provavelmente por inibição competitiva com a ACh, isto é, compete a nível de receptores colinérgicos do músculo brônquico, bloqueando impulsos vagais eferentes derivados das fibras pós-ganglionares, que atuam na broncoconstrição. O início de ação do brometo de ipratrópio é ligeiramente mais lento do que as drogas ß-agonistas. Mesmo assim alguma resposta broncodilatadora ocorre rapidamente, cerca de trinta segundos após a inalação. Cinquenta por cento da resposta eventual máxima ocorrem três a cinco minutos pós-administração. Oitenta por cento do efeito máximo ocorrem aos trinta minutos, sendo o pico máximo da ação em torno dos noventa a cento e vinte minutos.  A duração de seu efeito é de 6 horas, com a vantagem de ser pouco absorvido nas vias aéreas e pelo trato digestivo,74 determinando, portanto, mínimos efeitos colaterais. Os anticolinérgicos modernos empregados  por inalação são agentes que não afetam o clearance das secreções respiratórias, nem o volume ou a viscosidade da saliva.75

Várias publicações demonstraram que, em adultos e crianças com exacerbações de moderada a grave, o uso de SABA associado ao brometo de ipratrópio no tratamento emergencial da asma, houve melhora na função pulmonar com elevações do PFE e VEF1, determinando redução das hospitalizações quando comparado ao uso isolado do SABA, superior a 30%.76-78 Em pacientes com asma leve a moderada parece não haver benefício aparente na adição de anticolinérgico em dose única. Por outro lado, nos casos mais severos, deve-se adotar o esquema de doses múltiplas, a cada hora, sempre em associação aos ß2-agonistas.

Figura 3 – Fórmulas das drogas anticolinérgicas disponíveis por inalação


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